domingo, 6 de setembro de 2015

O Grito do Ipiranga, extraído do livro “1822” de Laurentino Gomes

O Grito do Ipiranga, extraído do livro “1822” de Laurentino Gomes.
O destino cruzou o caminho de D. Pedro em situação de desconforto e nenhuma elegância. Ao se aproximar do riacho do Ipiranga, às 16h30 de 7 de setembro de 1822, o príncipe regente, futuro imperador do Brasil e rei de Portugal, estava com dor de barriga. A causa dos distúrbios intestinais é desconhecida. Acredita-se que tenha sido algum alimento malconservado ingerido no dia anterior em Santos, no litoral paulista, ou a água contaminada das bicas e chafarizes que abasteciam as tropas de mula na serra do Mar. Testemunha dos acontecimentos, o coronel Manuel Marcondes de Oliveira Melo, subcomandante da guarda de honra e futuro barão de Pindamonhangaba, usou em suas memórias um eufemismo para descrever a situação do príncipe. Segundo ele, a intervalos regulares D. Pedro se via obrigado a apear do animal que o transportava para “prover-se” no denso matagal que cobria as margens da estrada.1 A montaria usada por D. Pedro nem de longe lembrava o fogoso alazão que, meio século mais tarde, o pintor Pedro Américo colocaria no quadro “Independência ou Morte”, também chamado de “O Grito do Ipiranga”, a mais conhecida cena do acontecimento. O coronel Marcondes se refere ao animal como uma “baia gateada”. Outra testemunha, o padre mineiro Belchior Pinheiro de Oliveira, cita uma “bela besta baia”.2 Em outras palavras, uma mula sem nenhum charme, porém forte e confiável. Era esta a forma correta e segura de subir a serra do Mar naquela época de caminhos íngremes, enlameados e esburacados. Foi, portanto, como um simples tropeiro, coberto pela lama e a poeira do caminho, às voltas com as dificuldades naturais do corpo e de seu tempo, que D. Pedro proclamou a Independência do Brasil. A cena real é bucólica e prosaica, mais brasileira e menos épica do que a retratada no quadro de Pedro Américo. E, ainda assim, importantíssima. Ela marca o início da história do Brasil como nação independente. O dia 7 de setembro amanheceu claro e luminoso nos arredores de São Paulo.3 O litoral paulista, porém, estava frio, úmido e tomado pelo nevoeiro. Faltava ainda uma hora para o nascer do sol quando D. Pedro saiu de Santos, cidadezinha de 4.781 habitantes, onde passara o dia anterior inspecionando as seis fortalezas que guarneciam as entradas pelo mar e visitando a família do ministro José Bonifácio de Andrada e Silva. Sua comitiva era relativamente modesta para a importância da jornada que iria empreender. Além da guarda de honra, organizada nos dias anteriores de forma improvisada nas cidades do vale do Paraíba, enquanto viajava do Rio de Janeiro para São Paulo, acompanhavam D. Pedro o coronel Marcondes, o padre Belchior, o secretário itinerante Luís Saldanha da Gama, futuro marquês de Taubaté, o ajudante Francisco Gomes da Silva e os criados particulares João Carlota e João Carvalho. Eram todos muito jovens, a começar pelo próprio D. Pedro, que completaria 24 anos um mês depois, no dia 12 de outubro. Padre Belchior, com a mesma idade, nascido em Diamantina, era vigário da cidade mineira de Pitangui, maçom e sobrinho de José Bonifácio. Virou testemunha do Grito do Ipiranga por acaso. Eleito deputado por Minas Gerais para as cortes constituintes portuguesas, convocadas no ano anterior, deveria estar em Lisboa participando dos debates. A delegação mineira, porém, foi a única a permanecer no“ Brasil em virtude das divergências internas e da incerteza a respeito do que se passava em Portugal. Saldanha da Gama, de 21 anos, era, além de secretário itinerante, camareiro e estribeiro mor do príncipe. Tinha o privilégio de ajudá-lo a se vestir e a montar a cavalo. Com 29 anos, Francisco Gomes da Silva, também chamado de “O Chalaça” — palavra que significa zombeteiro, gozador ou piadista —, acumulava as funções de “amigo, secretário, recadista e alcoviteiro” de D. Pedro, segundo o historiador Octávio Tarquínio de Sousa.4 Ou seja, era um faz-tudo, encarregado de arranjar mulheres para o príncipe, proteger seus negócios e segredos pessoais e defendê-lo em qualquer circunstância, por mais difícil e escusa que fosse. Marcondes, o mais velho de todos, tinha 42 anos. Nas primeiras duas horas, ainda sob a luz difusa do amanhecer, a comitiva percorreu de barco os canais e rios de água escura dos manguezais entre Santos e o porto fluvial de Cubatão, vilarejo com menos de duzentos habitantes ao pé da serra do Mar. Nesse local, D. Pedro encontrou os animais selados e o restante da guarda que o acompanharia até São Paulo. A subida da serra, porém, teve de ser retardada. Prostrado pelos problemas intestinais, o príncipe refugiou-se na modesta estalagem situada à beira do porto. Maria do Couto, responsável pelo estabelecimento, preparou-lhe um chá de folha de goiabeira, remédio ancestral usado no Brasil contra diarreia.5 A ação do chá apenas aliviou temporariamente as dores do príncipe, mas deu-lhe ânimo para prosseguir a viagem. No meio da manhã a comitiva começou a lenta subida pela Calçada do Lorena. Era uma das mais sinuosas e pitorescas estradas do Brasil. Batizada com o nome do capitão-general Bernardo José de Lorena, que a mandara construir em 1790 seguindo uma antiga trilha dos padres jesuítas, suportava o incessante tráfego das tropas de mulas que desciam ou subiam a serra com mercadorias do porto de Santos. Tinha oito quilômetros de extensão, três metros de largura e mais de 180 curvas em zigue-zague debruçadas sobre o precipício. A subida era tão íngreme e perigosa que os viajantes levavam pelo menos duas horas para chegar ao topo da serra. Ao passar por ali 17 anos mais tarde, o missionário metodista americano Daniel Kidder anotou: Ouvia-se primeiro a voz áspera dos tropeiros, tocando seus animais, a ecoar tão acima de nossas cabeças que parecia sair das nuvens. Depois, ouvia-se o clac-clac das patas ferradas dos animais nas pedras e avistavam-se as mulas no esforço de se segurarem na ladeira, parecendo arrastadas pelos pesados fardos que carregavam. Era preciso afastar-se para um lado da estrada e deixar passar os diversos lotes das tropas. Logo o tropel das mulas ia desaparecendo e também as vozes dos tropeiros e dos camaradas perdiam-se abaixo na floresta. O francês Hércules Florence, que também percorreria a Calçada do Lorena em 1825, três anos depois da Independência, registrou que Cubatão era um entreposto comercial muito frequentado, embora não passasse de “uma povoação com vinte ou trinta casas”. Nos oito dias em que permaneceria no local viu chegar diariamente três ou quatro tropas. Eram, segundo ele, comboios bem-organizados, compostos por quarenta a oitenta mulas e divididos em lotes menores de oito animais, que ficavam sob a responsabilidade de um tropeiro. “Desciam de São Paulo carregadas de açúcar bruto, aguardente e toucinho, e retornavam com sal, vinhos portugueses, vidros e ferragens”, relatou Florence. Achou a subida da serra péssima devido à pavimentação ruim, feita de grandes lajes que se deslocavam facilmente sob o peso das tropas e tornavam a jornada muito cansativa. “Galgamos a metade do caminho a pé, a fim de poupar os nossos animais”, relatou.““A cada passo, as bestas paravam ofegantes de cansaço. Do alto da serra levavam-se mais seis horas para atravessar o trecho do planalto em direção à capital paulista, incluindo parada de uma hora para almoço e descanso. Por isso, só ao cair da tarde daquele Sete de Setembro a comitiva chegou à colina do Ipiranga. Por ordem do príncipe, que mais uma vez se vira compelido a interromper sua jornada devido às cólicas intestinais, a guarda de honra se adiantara e o esperava em uma venda situada seiscentos metros mais à frente, junto ao riacho que ficaria famoso antes do anoitecer. Em tupi-guarani, Ipiranga significa “rio vermelho”. Naquela época, apesar da tonalidade escura e barrenta de suas águas (daí a denominação), era um arroio selvagem e sem poluição, cujo leito serpenteava por entre roças e pastagens salpicadas por cupinzeiros de chácaras e sítios que se estendiam por um local ermo, de população rarefeita. Das margens do Ipiranga até a cidade de São Paulo havia apenas oito casas, onde moravam 42 pessoas.10 Hoje, é um canal de esgotos encaixotado sob o asfalto e o concreto de uma das maiores metrópoles do planeta. Das 24 nascentes originais, situadas dentro do Parque Estadual das Fontes do Ipiranga, quatro desapareceram pela redução do lençol freático na região. Alguns quilômetros adiante, após receber uma quantidade monumental de lixo, descargas domésticas e industriais, deságua no rio Tamanduateí. Ali, o índice de poluição é de 62 miligramas por litro de água. A taxa de oxigênio, próxima de zero nos meses sem chuvas, faz dele um riacho morto, incapaz de abrigar peixes ou qualquer outra forma de vida. Em 1822, D. Pedro ainda estava no alto da colina quando chegou a galope, vindo de São Paulo, o alferes Francisco de Castro Canto e Melo. Ajudante de ordens, amigo de D. Pedro e irmão de Domitila de Castro Canto e Melo, a futura marquesa de Santos, o alferes era parte da comitiva que havia saído do Rio de Janeiro com o príncipe três semanas antes em direção a São Paulo. Também tinha descido a serra do Mar no dia 5 de setembro, mas em Cubatão fora despachado de volta por D. Pedro, com ordens para avisá-lo de qualquer novidade vinda do Rio de Janeiro — sinal de que, por intuição ou informação, D. Pedro estava consciente de que algum acontecimento muito grave o aguardava naqueles dias. E foi exatamente isso que ocorreu ali na colina do Ipiranga. Ao se encontrar com a comitiva real, Canto e Melo trazia notícias inquietantes, mas sequer teve tempo de transmiti-las a D. Pedro. Logo atrás dele chegaram dois mensageiros da corte do Rio de Janeiro. Exaustos e esbaforidos, Paulo Bregaro, oficial do Supremo Tribunal Militar, e o major Antônio Ramos Cordeiro tinham percorrido a cavalo cerca de quinhentos quilômetros em cinco dias, praticamente sem dormir. Eram portadores de mensagens urgentes enviadas por José Bonifácio e a princesa Leopoldina, mulher de D. Pedro e encarregada de presidir as reuniões do ministério na ausência do marido. Antes de partir do Rio de Janeiro, Bregaro havia recebido de Bonifácio instruções categóricas a respeito da urgência da viagem: “Se não arrebentar uma dúzia de cavalos no caminho, nunca mais será correio. Veja o que faz!” Os meses anteriores tinham sido de grande tensão e confronto entre portugueses e brasileiros. Havia ressentimentos e desconfianças acumulados dos dois lados do Atlântico. Em Portugal, conspirava-se para que o Brasil voltasse à condição de colônia, situação que perdurara durante mais de três séculos até a chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, fugindo das tropas do imperador francês Napoleão Bonaparte. O rei D. João VI retornara a Portugal em abril de 1821, depois de nomear o filho D. Pedro príncipe regente do Brasil. Para trás, ficava um país transformado. Entre as muitas mudanças ocorridas nesses“13 anos, o Brasil tinha sido promovido, em 1815, a Reino Unido com Portugal e Algarve. Por isso, em 1822 todo o esforço dos brasileiros estava concentrado em assegurar a autonomia e os benefícios já conquistados com D. João. Também por essa razão as notícias recebidas por D. Pedro naquele Sete de Setembro eram tão ruins. No dia 28 de agosto o navio Três Corações atracara no porto do Rio de Janeiro trazendo as últimas novidades de Portugal. Eram papéis explosivos. Incluíam os decretos em que as cortes constituintes portuguesas na prática destituíam D. Pedro do papel de príncipe regente e o reduziam à condição de mero delegado das autoridades de Lisboa. Suas decisões tomadas até então estavam anuladas. A partir daquele momento, seus ministros seriam nomeados em Portugal e sua autoridade não mais se estenderia a todo o Brasil. Ficaria limitada ao Rio de Janeiro e regiões vizinhas. As demais províncias passariam a se reportar diretamente a Lisboa. As cortes também determinavam a abertura de processo contra todos os brasileiros que houvessem contrariado as ordens do governo português. O alvo principal era o ministro José Bonifácio, defensor da Independência e grande aliado de D. Pedro. Convocadas à revelia de D. João VI, as cortes vinham tomando decisões contrárias aos interesses do Brasil desde o ano anterior. No final de 1821, tinham ordenado a volta de D. Pedro a Portugal, de onde passaria a viajar incógnito pela Europa com o objetivo de se educar. O príncipe decidira ficar no Rio de Janeiro, mas desde então o seu poder vinha sendo reduzido. Tribunais e repartições em funcionamento no Brasil durante a permanência da corte haviam sido extintos ou transferidos para a antiga metrópole. As províncias receberam instruções para eleger cada uma sua própria junta de governo, que se reportaria diretamente a Lisboa e não ao príncipe no Rio de Janeiro. Em outra tentativa de isolar D. Pedro, as cortes tinham nomeado governadores das armas, ou seja, interventores militares, encarregados de manter a ordem em cada província e que só obedeciam à metrópole. A radicalização se expressava no tom dos discursos em Lisboa. O deputado português Borges Carneiro havia chamado D. Pedro de “desgraçado e miserável rapaz” ou simplesmente de “o rapazinho”. A correspondência entregue pelos dois mensageiros a D. Pedro na colina do Ipiranga refletia esse momento máximo de confronto entre Brasil e Portugal. Uma carta da princesa Leopoldina recomendava ao marido prudência e que ouvisse com atenção os conselhos de José Bonifácio. A mensagem do ministro dizia que informações vindas de Lisboa davam conta do embarque de 7.100 soldados que, somados aos seiscentos que já tinham chegado à Bahia, tentariam atacar o Rio de Janeiro e esmagar os partidários da Independência. Diante disso, Bonifácio afirmava que só haveria dois caminhos para D. Pedro. O primeiro seria partir imediatamente para Portugal e lá ficar prisioneiro das cortes, condição na qual já se encontrava seu pai, D.João. O segundo era ficar e proclamar a Independência do Brasil, “fazendo-se seu imperador ou rei”. “Senhor, o dado está lançado e de Portugal não temos a esperar senão escravidão e horrores”, escrevia Bonifácio. “Venha Vossa Alteza Real o quanto antes, e decida-se, porque irresolução e medidas de água morna (...) para nada servem, e um momento perdido é uma desgraça.”13 Uma terceira carta, do cônsul britânico no Rio de Janeiro, Henry Chamberlain, mostrava como a Inglaterra analisava a situação política em Portugal. Segundo ele, já se falava em Lisboa em afastar D. Pedro da condição de príncipe herdeiro como punição pelos seus repetidos atos de rebeldia contra as cortes constituintes. A carta de Leopoldina, a mais“ enfática de todas, terminava com uma frase que não deixava dúvida sobre a decisão a ser tomada: “Senhor, o pomo está maduro, colhe-o já!” Quatro anos mais tarde, em depoimento por escrito, padre Belchior registrou o que havia testemunhado a seguir: D. Pedro, tremendo de raiva, arrancou de minhas mãos os papéis e, amarrotando-os, pisou-os e deixou-os na relva. Eu os apanhei e guardei. Depois, virou-se para mim e disse: — E agora, padre Belchior? Eu respondi prontamente: — Se Vossa Alteza não se faz rei do Brasil será prisioneiro das cortes e, talvez, deserdado por elas. Não há outro caminho senão a independência e a separação. D. Pedro caminhou alguns passos, silenciosamente, acompanhado por mim, Cordeiro, Bregaro, Carlota e outros, em direção aos animais que se achavam à beira do caminho. De repente, estacou já no meio da estrada, dizendo-me:— Padre Belchior, eles o querem, eles terão a sua conta. As cortes me perseguem, chamam-me com desprezo de rapazinho e de brasileiro. Pois verão agora quanto vale o rapazinho. De hoje em diante estão quebradas as nossas relações. Nada mais quero com o governo português e proclamo o Brasil, para sempre, separado de Portugal. Respondemos imediatamente, com entusiasmo: — Viva a Liberdade! Viva o Brasil separado! Viva D. Pedro! O príncipe virou-se para seu ajudante de ordens e falou: — Diga à minha guarda que eu acabo de fazer a independência do Brasil. Estamos separados de Portugal. O tenente Canto e Melo cavalgou em direção a uma venda, onde se achavam quase todos os dragões da guarda. Pela descrição do padre Belchior não houve sobre a colina do Ipiranga o brado “Independência ou Morte”, celebrizado um século e meio mais tarde pelo ator Tarcísio Meira, no papel de D. Pedro em filme de 1972. O famoso grito aparece num outro relato, do alferes Canto e Melo, registrado bem mais tarde, quando o acontecimento já havia entrado para o panteão dos momentos épicos nacionais. A versão do alferes, de tom obviamente militar, mostra um príncipe resoluto e determinado. Por ela, D. Pedro teria lido a correspondência e, “após um momento de reflexão”, teria explodido, sem pestanejar: — É tempo! Independência ou morte! Estamos separados de Portugal! A terceira testemunha, o coronel Marcondes, infelizmente não estava no alto da colina do Ipiranga em condições de esclarecer as contradições entre os depoimentos do padre Belchior e do alferes Canto e Melo. Marcondes, como se viu acima, recebera ordens de D. Pedro para se adiantar com a guarda de honra e naquele momento descansava com seus soldados numa venda próxima do riacho, local hoje conhecido como “Casa do Grito”. Por precaução, no entanto, havia destacado um vigia para avisá-lo da eventual aproximação do príncipe. Foi desse ponto de observação que Marcondes primeiro viu Bregaro e Ramos Cordeiro, os dois mensageiros da corte, cruzarem a galope rumo à colina. Passados alguns instantes, notou que a sentinela vinha no sentido contrário, em direção à guarda de honra. Avisava da chegada de D. Pedro, também a galope. O depoimento do coronel: Poucos minutos poderiam ter-se passado depois da retirada dos referidos viajantes (Bregaro e Cordeiro), eis que percebemos que o guarda, que estava de vigia, vinha apressadamente em direção ao ponto em que nos achávamos. Compreendi o que aquilo queria dizer e, imediatamente, mandei formar a guarda para receber D. Pedro, que devia entrar na cidade entre duas alas. Mas tão apressado vinha o príncipe, que chegou antes que alguns soldados tivessem tempo de alcançar as selas. Havia de ser quatro horas da tarde, mais ou menos. Vinha o príncipe na frente. Vendo-o voltar-se para o nosso lado, saímos ao seu encontro. Diante da guarda, que descrevia um semicírculo, estacou o seu animal e, de espada desembainhada, bradou: — Amigos! Estão, para sempre, quebrados os laços que nos ligavam ao governo português! E quanto aos topes daquela nação, convido-os a fazer assim! E arrancando do chapéu que ali trazia a fita azul e branca, a arrojou no chão, sendo nisto acompanhado por toda a guarda que, tirando dos braços o mesmo distintivo, lhe deu igual destino.— E viva o Brasil livre e independente — gritou D. Pedro. Ao que, desembainhando também nossas espadas, respondemos: — Viva o Brasil livre e independente! Viva D. Pedro, seu defensor perpétuo! E bradou ainda o príncipe: — Será nossa divisa de ora em diante: Independência ou Morte! Por nossa parte, e com o mais vivo entusiasmo, repetimos:— Independência ou Morte! A proclamação de D. Pedro descrita pelo coronel Marcondes é chamada por alguns historiadores de “Segundo Brado do Ipiranga”. Aconteceu alguns minutos depois do primeiro, já na meia encosta da colina, a cerca de quatrocentos metros do riacho. É interessante observar as sutilezas entre os dois gritos do Ipiranga. O primeiro ocorreu de forma mais simples, na presença de um grupo restrito e revela traços de indecisão na atitude de D. Pedro. O segundo, solene e convicto, perante a guarda de honra, é o que ficou registrado na memória nacional. O relato do padre a respeito desse segundo grito confirma a versão de Marcondes, embora com palavras diferentes. Por ele, diante da guarda, o príncipe repetiu, agora em tom mais enfático, a declaração que fizera momentos antes: — Amigos, as cortes portuguesas querem mesmo escravizar-nos e perseguem-nos. De hoje em diante nossas relações estão quebradas. Nenhum laço nos une mais. E, arrancando do chapéu o laço azul e branco, decretado pelas cortes como símbolo da nação portuguesa, atirou-o ao chão dizendo: — Laço fora, soldados! Viva a Independência e a liberdade do Brasil. Respondemos com um viva ao Brasil independente e a D. Pedro. O príncipe desembainhou a espada, no que foi acompanhado pelos militares. Os acompanhantes civis tiraram os chapéus. E D. Pedro disse:— Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro fazer a liberdade do Brasil.“— Juramos — respondemos todos. D. Pedro embainhou novamente a espada, no que foi imitado pela guarda, pôs-se à frente da comitiva e voltou-se ficando em pé nos estribos: — Brasileiros, a nossa divisa de hoje em diante será Independência ou Morte; e as nossas cores, verde e amarelo, em substituição às das cortes. Acompanhado pela guarda de honra, desde aquele momento rebatizada com o pomposo nome de “Dragões da Independência”, D. Pedro chicoteou a sua “baia gateada” para vencer os últimos cinco quilômetros do total de setenta que percorreria naquele dia. Faltava uma hora para o pôr do sol quando entrou em São Paulo saudado pelos sinos das igrejas e pelos escassos moradores que se aglomeravam nas ruas de terra batida. Exausto, empoeirado e ainda debilitado pelos problemas intestinais, recolheu-se ao Palácio dos Governadores, o mesmo que o havia hospedado dias antes ao chegar do Rio de Janeiro. As notícias dos extraordinários acontecimentos daquela tarde às margens do Ipiranga se espalharam rapidamente. Na frente do acanhado teatrinho do Pátio do Colégio um grupo de partidários da independência ligado à Igreja e à maçonaria reuniu-se para decidir o que fazer. Era preciso homenagear o príncipe, mas ninguém sabia exatamente como proceder. Obviamente, não havia tempo de preparar um tedéum ou uma recepção de gala, como a circunstância pedia. Era necessário improvisar. Por isso, decidiu-se aproveitar a encenação da peça O convidado de pedra, marcada para aquela noite. D. Pedro gostava de teatro e sua presença no camarote principal já estava confirmada. “Disseram que era preciso declarar-se um monarca e formar uma monarquia brasileira”, relatou quarenta anos mais tarde o padre Ildefonso Xavier Ferreira, integrante do grupo. “Ninguém merecia mais do que o ínclito príncipe de Portugal, que nos acabava de dar a independência.” O próprio Ildefonso foi encarregado de fazer a aclamação. D. Pedro entrou no teatro às 21h30 e, como previsto, dirigiu-se ao camarote principal sem saber da homenagem que lhe prestariam em seguida. Antes que o espetáculo começasse, padre Ildefonso levantou-se do camarote número 11, onde se reunia o grupo de maçons, e se dirigiu à plateia. Ali, colocou-se de pé na terceira bancada, bem em frente ao lugar ocupado pelo príncipe, respirou fundo e se preparou para cumprir seu papel. Na hora de fazer a aclamação, porém, ficou inseguro e relutou por alguns segundos. “Temia que o príncipe não aceitasse”, contou depois. “Então, eu seria preso como revolucionário.” Por fim criou coragem e soltou o vozeirão: — Viva o primeiro rei brasileiro! Para seu alívio, D. Pedro inclinou-se em sinal de aprovação e agradecimento. Era a senha para que todo o teatro viesse abaixo e repetisse o brado do padre Ildefonso: — Viva o primeiro rei brasileiro! — explodiu a multidão. Animado com a repercussão, padre Ildefonso repetiu o grito por três vezes. “Virou o herói da noite diante daquele que havia sido o herói do dia.

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